sexta-feira, 5 de março de 2010

Brincadeira da vida

Bem dizia o filósofo Montaigne no séc. XVI, que o ser humano é inconstante. Dizia também que sábio é aquele que busca a sua própria constância. Pois complemento: se sábio o hei de ser, feliz não o serei. Onde podemos encontrar alegrias se não na inconstância?
Olhemos a nossa infância pela janela de nossas lembranças. Ilusões criadas por nossas percepções puras, tropeços e batidas incontáveis, desavenças instantâneas entre os amigos. Não tínhamos vícios, o hábito não era elaborado quanto o é hoje. Os nossos padrões eram formados a cada dia, a cada experiência, seja num tombo de bicicleta após uma manobra mais arriscada, seja num conselho tenro de nossas mães. Éramos felizes e, mesmo sem o luxo, às vezes com muito pouco tínhamos a capacidade de garimpar alegrias numa inconstância inocente de manobras, de atos, de brincadeiras, de afetos que iam e vinham...
Enfim, a vida nos transformou aos poucos em “adultos” e aquela nossa criança interior foi ficando cada vez mais de escanteio, presa em entre nossas novas aquisições: preconceitos, hábitos, ganância, preocupações infinitas com os que nos julgam. Passamos a visar a ascensão na carreira, uma vida farta de ganhos e aquisições. O consumo impera em nossas mentes. Somos felizes pelo que temos e miseráveis pelo que somos. E aquela criança? Era tão feliz! É... O tempo e a inércia da vida foram matando-a aos poucos... Ela ainda está lá, e a nossa constância embasada nos nossos hábitos encarcerou qualquer esperança de libertá-la.
Agora olhemos a nossa vida adulta... Não é justamente quando comemos um sorvete tão calórico que só pensar já engorda, quando fugimos de nossa constância, que somos felizes? Ora é claro que evitamos os excessos, pois aprendemos os caminhos que podem nos levar a maus bocados. No entanto, os caminhos de antes nem sempre levam aos mesmos resultados desagradáveis de um passado remoto.
A partir desta perspectiva, devemos então, nos desafiar a desenvolver outra sabedoria, agora adultos. A sabedoria da inconstância. Não digo que temos que fugir a nossa ética ou mesmo a nossa essência de valores. Devemos sim, é dar asas sem remorsos a nossa criança interior quando ela nos chama. Afinal já somos munidos de discernimentos que antes não tínhamos. Conhecemos melhor nossos limites. Não digo que seja fácil muitas vezes delimitá-los, e corramos um risco maior de arrependimentos. Mas que seja! Quem disse que a vida é fácil? Se os arrependimentos surgirem, que sirvam para o crescimento e amadurecimento de nossa psiquê!
Não abandonemos é claro, a constância, pois ela constrói, ela nos traz a paz de espírito e exercita a paciência. Contudo, não nos esqueçamos de abrir as portas de um coração sedento de vida, e deixemos esta criança atuar no palco de nossas vidas. Cuidemos dela com o amor, amor próprio, pois assim fica mais fácil amar aos outros e amar a vida.

Fernando Wolf

2 comentários:

  1. afinal, de que adianta comer e não se lambuzar???
    muito bom o texto
    beijos Ivia

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  2. Pois sim, sejamos "crianças" inconstantes sempre buscando novas descobertas e aprendendo com as coisas da vida, sem medo de errar. Porem hoje sempre "aceitando suas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança" como já disse Shakespeare, pois afinal temos que aceitar que nao somos mais crianças.
    Nati

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