Conheci um homem. Um homem de grande coração, meio mole, pois
então. Um homem artista do tempo pintado por cabelos brancos. Levava consigo
estórias e dentre elas, uma de amor por oito almas, metade delas feitas, metade
resgatadas. Aquele senhor simplório tinha os olhos bons, não menos sofridos,
mas bons. Já tinha idade para desistir como muitos por aí. Mas não, ali estava
ele de pé, contando-me seus causos.
Eram contos da vida. Sua e só sua singela vida. Lá trás, a
superação no sustento de sua faculdade pelos dotes de mecânico que aprendera
com o pai. Vivera a infância numa mecânica. Imaginei uma criança de olhos
atentos, de suspensório e sapato surrado, argüindo com o pai o funcionamento de
máquinas agrícolas tão complexas. Tornou-se doutor. Exercia então a arte de ser
médico. Tinha sonhos e ideais na época... agora daquilo nada mais senão sua
coleção... suas lembranças de então.
Pois, contou-me suas façanhas de corrigir carros desgastados.
Era o brilho que voltava aos olhos. Enrustido de talentos mil, sua coleção de
fuscas construiu. Porém exaltante se viu, quando sua especialidade definiu: “sou
afinal especialista em DKVs”. O sorriso era contagiante. Senhor do tempo e da paciência,
mostrava-se exemplar raro de humano.
Mas algo não saia de minha atenção, sua caixa pequena e
transparente com pequenos objetos comuns aos olhos. A caixinha tinha uma feição
caseira e nostálgica: um carretel de linha de costura, uma tesourinha, uma rolha
de garrafa e uma fita métrica (aquela fita enrolada das costureiras).
Obviamente perguntei: “desculpe meu senhor, mas porque trazes tais objetos ao
seu labor?” Ele de pronto não respondeu as funções de cada um, mas logo
mencionou o nome de sua avó. Estava ele ali, mais uma vez fazendo uma viajem ao
tempo. Contava-me: “naquele tempo minha avó possuía aquelas latas onde eram
armazenados produtos vindos da cidade, eram raras e por tal, minha avó a
utilizava para carregar estes úteis instrumentos, com a diferença que o
carretel era feito de madeira.” Agora seus olhos sonhavam a sua infância. Tudo
aquilo era bonito e meigo. Era sua identidade resumida a uma caixinha. A
caixinha de sua avó.
Ali naquela conversa “de café-da-manhã” eu descobri quão
bonito é quando nossa identidade se constrói nas coisas mais simples da vida.
No cheiro do pão fresco e de grama molhada. Na sensação de frio debilitante da
primeira onda de um mar gelado. Do sorriso dos primos, dos pais, dos irmãos...
Do sofá, dos cochilos da tarde, da preguiça. Da recepção calorosa de um cão.
Na despedida daquele encontro singular, as almas agora
estavam serenas. Afinal, tudo é tão frágil e mutável, que abençoados
são os dias de um homem quando a contemplar este sopro de vida. Bom foi aquele dia.
Fernando Wolf