quarta-feira, 8 de junho de 2011

A menina e o mar



Marta era uma adolescente qualquer de uma cidade qualquer. Sua rotina era comum, entre o colegial e o shopping, assim como eram suas futilidades juvenis. Com uma vida pela frente, queria que a sua fosse com brilho, diferentemente da dura realidade que seus pais enfrentavam dia a dia para pagar as contas. Ela usava seu tempo com a displicência inocente de uma jovem linda cheia de sonhos.
Largara o balé que já fora a essência de sua vida na sua não distante infância. Esses tipos de passatempos já não lhe interessavam mais como outrora. Agora havia garotos, sapatos, glamour, revistas, modelos, um mundo a descobrir. Havia um quê de pressa, muitas experiências para uma menina só. Não queria que sua juventude passasse em vão. Queria sim a aventura de um amor fugaz, embebedar-se com drinks de chocolate, conhecer lugares por um mundo de encanto, queria viver.
Realmente tinha a beleza a seu favor, domava os rapazes da vizinhança qual flauta frente às perigosas najas. Tinha a inveja das amigas, só não o sapato das também invejadas. Passou a inebriar-se com o elixir das festas mais badaladas, com “drops animados” e destilados coloridos. Conquistou amigos muitos aos quais tinha dificuldade de guardar nomes, tantos que eram. Os rapazes sentiam-se felizes pelo simples fato de tão bela jovem aceitar suas “oferendas” com bebidas e a exclusividade das festas mais caras da cidade. Era feliz, se sentia no auge como nunca. Seus pais já haviam parado de insistir, pois sentiam que já era tarde, pouco podiam frente à tão imposta personalidade.
Marta namorava André, o rapaz do momento que era tão fiel quanto seu amigo Judas. Dispunha de um belo carro esportivo vermelho (clichê?) onde já sentaram as mais belas moças da cidade. Ele gostava muito de dirigir veloz qual gavião sentindo a brisa nas ventas. Marta adorava a adrenalina correr seu corpo esguio. Achava-se com sorte de ter se tornado a “principal” de André. Afinal tinha o olhar que queria de suas amigas – não muito agradáveis por sinal.
Como uma tragédia contada por videntes, esta estava pronunciada havia tempos. Marta e André brigaram mais uma vez em uma festa por motivos de infelizes colocações em horas não propícias como qualquer briga entre dois amantes. O furor nos olhos de André era visível. Marta pediu que André a deixasse em casa. André a obedece sem rodeios, pois já havia ligado para seus amigos que iriam se encontrar em uma boate de luz vermelha qualquer. Marta já no carro, já desconfiada do enredo que se armava, inicia verdadeiros golpes verbais ao ouvido de um desvairado bêbado. Não esperávamos outra reação senão a ira que veio em forma de velocidade. André com sua face rubra e olhos fixos, fazia curvas perigosas de ouvir o cantar dos pneus. Fazia manobras perigosas projetando seu corpo para fora do carro soltando gritos ao vento. Era tudo negro, nebuloso... Marta estava então apavorada. Já vira situações de iminente perigo antes, mas nada comparado aquilo.
Em certa curva, em certa estrada, havia obras na pista e o asfalto havia sido retirado. Foi ali que ocorrera o derrapar do carro em alta velocidade. Marta fora lançada para fora do veículo e André, preso ao carro já inconsciente, caiu afundando aos poucos no rio.
Marta acordou imóvel em uma maca já no hospital. Mirava as luzes brancas e turvas sem saber o que havia acontecido. Tinha somente conhecimento de suas sensações. Sentia muita dor, mas não sentia suas pernas. Era o inicio do fim de sua antiga vida.
No outro dia, já lúcida e ciente de sua situação, de sua paraplegia, passou por exames que confirmaram o já esperado. Fratura de vértebras comprimindo sua medula em várias partes, seccionando as vias que levavam estímulo a suas delicadas pernas. Marta não andaria mais, nunca mais.
Ficou sabendo logo após que nunca mais beijaria seu namorado. André falecera afogado no rio. Os pais de Marta ficaram estarrecidos em choque junto aos pais de André. Desenhou-se uma tragédia que marcaria as duas famílias para sempre.
Marta não conseguiu ir ao velório de seu amado, chorou horas em silêncio ora por Andre ora por sua nova condição. Era bonita mesmo atrás das escaras deixadas pelo acidente. Mas agora se via feia, imprestável... Queria morrer...
Soube dias após, por palavras que de longe me chegaram aos ouvidos, que Marta passara por novas cirurgias na coluna. Conseguiram descomprimir em parte sua medula e que até recuperou um pouco da força em suas pernas, mas caminhar não lhe foi ainda assim possível.
Veio o tempo, os dias se passaram, a tragédia foi se escondendo nos confins de minhas lembranças tristes, se apagando no dia a dia. Conhecia-os por longe, não tinha nenhuma relação fraterna com aquelas famílias, somente guardava um carinho por aquela moça tão jovem e bonita.
Certa monta, numa certa praia num certo verão, sentado ao sol frente ao mar, vejo Marta. Bonita como nunca. Era o tempo que a fizera, como um bom vinho, possuir uma beleza mais consistente. Sua cútis branca era ofuscada pelos seus cabelos loiros compridos que só ressaltavam seus olhos azuis, dois vitrais que transpareciam a beleza de sua alma transformada.
Ali estava ela, de cadeira de rodas, ao lado de sua irmã, na beira da areia mirando o mar. Seus olhos resplandeciam a emoção. Era a primeira vez que se dispusera a ver o oceano após dois anos de árduas sessões de fisioterapia. O seu sorriso lembrava uma menina ao ganhar um ursinho de seu pai. Mas já não era mais a menina de antes. Seus olhos agora eram marcados de luta e mágoas, eram bonitos e profundos, não mais de uma menina qualquer.
Aquele era um momento mágico, as pessoas fitavam Marta. Sua irmã ficara primeiramente um pouco constrangida, mas para Marta aquilo não importava. Seu sorriso ia de orelha a orelha, ria com os olhos, ria com a alma. Ela finalmente estava de fronte com seu velho amigo, o mar que se punha de um azul turquesa clarificado pelo seu irmão sol. Tinha ali na praia grandes lembranças de um tempo alegre, de bronzeados, de paqueras, de brincadeiras com os amigos...
Ah o sol... iluminando seus cabelos longos, lisos, loiros, lindos! Se pedissem para descrever a felicidade, descreveria não um exemplo de vida qualquer de uma personalidade bem sucedida qualquer. Descreveria sim aquele momento, aquele olhar, aquele sorriso. Uma fração de tempo imortalizada na lembrança do universo. Um ser belo, esguio em sua cadeira mirando o horizonte, sem se importar com os olhos curiosos dos que a entornavam. Fez-se bela a conquista, a conquista de um recomeçar... Nunca mais veríamos àquela felicidade, daquele momento, naqueles olhos. Um momento que se perderia no espaço e no tempo, só não se perderia de nossas lembranças...
Marta recebeu ajuda, sentou-se na areia morna que se esparramava macia por entre seus dedos. Um matar da saudade... Pediu para que a levassem para perto das ondas pequenas que quebravam em estalidos suaves de espuma. Sentou ali e fitou mais uma vez o oceano imenso. Sentiu-se acolhida... As ondas batiam em suas pernas inertes. Mesmo assim a sua face se mostrava contente e erguida ao sol poente. O mar agora era mais calmo, se misturava ao laranja cada vez mais plúmbeo e sereno. Lembrou seus duros anos após o acidente. Uma lágrima se misturou ao oceano. Olhou para trás como que recordando sua nova vida, olhou mais uma vez o horizonte, inspirou um sopro de novo ânimo e molhou seus cabelos no mar com os olhos fechados e tranqüilos, finalmente em paz...
Assim se fez aquele momento...  A vida por fim, enquanto vida, se renova...

(como uma onda do mar!!)


Fernando Wolf

Nenhum comentário:

Postar um comentário